Intifada

INTIFADA, OU AS MUITAS FORMAS DE VER 

O primeiro contacto do visitante é com o Título.

Concentrada num só termo, a instalação de Carlos No antecede-se, institui-se como conceito antes de ser vista. E a razão desse desdobramento significante advém do carácter icónico da palavra, da enunciação verbal causadora de um estímulo imediato, activando imagens e memória. De origem árabe, lida com a grafia ocidentalizada, “Intifada” assim dita e traduzida, pode significar tremor, abanão, revolta. Mas também despertar ou guerra das pedras remetendo para o conflito expresso no Médio Oriente. Sem necessidade de dicionário na mão, todos o sabemos. Há anos. Há uma durabilidade que atravessa o conceito tornando-o quotidiano, cabeçalho dos periódicos, abertura dos telejornais. Podíamos não saber o seu significado com exactidão mas sabemos-lhe o acto, o gesto quase diário, as consequências de uma coexistência dificilmente negociada entre Israelitas e Palestinianos.

A história localiza a primeira Intifada no final dos anos 80, mais precisamente em Dezembro de 1987 quando alguns refugiados de Jabalia, em Gaza primeiro e as populações dos territórios ocupados depois, se insurgiram contra a presença das forças militares israelitas atirando-lhes pedras. Outros movimentos semelhantes sucederam-se ao longo dos anos, em vagas e acalmias pulverizadas de conflitos. Forma de protesto, desejo de expulsão em acções cíclicas sem fim à vista, na incomunicabilidade dos beligerantes, na incapacidade de alcançar um acordo de paz. Mas esta circunstância é atravessada pela longa temporalidade de uma convivência de gestão difícil, num território a que povos de diferentes religiões se sentem pertencer.

Se a palavra activa a memória, associa-lhe a complexidade desse contexto e uma panóplia de imagens que se consubstanciam na visão de cada visitante sobre o assunto.

É tudo isso que entra em linha de conta quando se aceita o desafio lançado pelo trabalho de Carlos No. O sentido de “Intifada” (mas sobretudo a assumpção crítica e reflexiva da sua existência pensada colectivamente) coisifica-se num espaço objectual. O artista recontextualiza a terminologia associando-lhe, não a crueza documental de imagens resgatadas do real, mas a visão metafórica de um palco de guerra concebido como instrumento cognitivo de identidade e civilização. O mote central desse dispositivo: uma mesa de ping-pong e uma sala tornada, toda ela, campo de jogo.

Mas o primeiro contacto do visitante com a instalação de Carlos No, pode não ser com o Título.

Pode ser com a entrada desavisada no espaço definido pelo artista como sala de jogos desapropriada do seu sentido primeiro, uma estrutura lúdica agreste que desmonta as noções de evasão e desporto, que descontextualiza os objectos do seu sistema habitual de apropriação, os reinventa e recompõe numa trama absurda que suscita no visitante surpresa e inquietude.

No centro da sala, uma parte de uma mesa de ping-pong trilhada ao meio, em lugar da rede, por um altíssimo muro de tijolo, encimado por arame farpado adensando uma sensação de intransponibilidade. Aguça-se no espectador a curiosidade de espreitar o outro lado, o lugar proibido do olhar e do estar, como se se tivesse descoberto a charada de Lewis Carrol na passagem para o outro lado do espelho. Neste país das maravilhas que comporta lados de cá e de lá, divide-se em dois o espaço e os passos do visitante. Do lado de lá do muro, espalham-se sobre a mesa e pelo chão, numerosas de bolas celulósicas brancas a fazer adivinhar um jogo falho, um contra-jogo, um monólogo surdo exercitado sem a resposta desejada, frente ao muro. Olhadas em conjunto, uma e outra metades prolongam-se através do muro, e negam-se na possibilidade de uma relação negociada por regras estabelecidas e manuseadas em liberdade pelos dois lados.

Ao conhecer o título da instalação de Carlos No, no espaço fértil do intervalo entre o visto e o lido, confirma-se a estranheza familiar em face dos desaguisados do Homem. Sabemos que há um muro na Cisjordânia, que o entendimento entre povos e religiões tem sido impossível, que há estampidos e silêncios dilacerados de ambos lados, gestos sem retorno. Mais do que citar uma linha de separação, Carlos No torna física e visualmente simbólica esta ideia de fronteira. Qualquer forma de a trespassar torna-se tão absurda quanto uma bola de ping-pong atirada contra um muro de tijolo e cimento.

Os conflitos no Médio Oriente tinham já sido centrais na concepção de peças anteriores, como “Montes Golan”, um objecto escultórico realizado pelo artista a partir de pedaço de madeira fendido e marcado, em cada um dos lados dessa laceração involuntária, por bandeiras miniatura de Israel e da Síria. Mas pode-se dizer que uma temática mais ampla da identidade dos povos, da sua transumância, dos seus actos de enfrentamento ou de desrespeito pelos direitos humanos comuns atravessa todo o trabalho de Carlos No. Nas pinturas da série “Histórias Infantis”, de 2002, o despoletar dessa mesma estranheza nonsense situa-se no recurso à puerilidade das histórias de encantar, cujos textos são escritos nas telas, e a aspereza das imagens de crianças soldado que com elas convivem. Esta imobilização de discursos dissonantes, de dualidades significantes por continuidade ou desarticulação funcionava, tal como agora em Intifada, como uma eficaz estratégia criativa.

Ao recuperar a ideia de jogo como território de reflexão, denúncia e protesto – tal como na peça “Área Desminada”, um campo de matraquilhos de bonecos amputados a remeter para a questão das minas anti-pessoais em África – Carlos No assume visualmente a herança de estudos como os de Johan Huizinga, Roger Caillois ou Norbert Elias que analisaram o jogo como sistema simbólico fundamental para o conhecimento e desenvolvimento dos processos de civilidade. Mas sobretudo configura a sua pratica artística individual, como plataforma sensível e comprometida face a um mundo de expectativas e pequenas conquistas.

 

Ana Ruivo
Lisboa, Abril de 2010