Galera-Hórreo
A obra do artista plástico Carlos No (Lisboa, 1967), intitulada ‘Galera-Hórreo’, consiste na colocação de um contentor marítimo com cinco pares de remos sobre seis pés de betão assentes no solo, junto ao Centro de Interpretação do Hórreo, em Bueño, nas Astúrias, Espanha.
Conceptualmente, esta obra faz referência ao passado histórico (e colonial) da Europa, aludindo a questões económicas e políticas como o “Poder”, a questões sociais e históricas como a “Escravatura”, ou ainda às mais variadas questões relativas às alterações climáticas, em muito provocadas pela vertigem pós-industrial e pelo consumo em massa que, no seu conjunto, constituem as principais abordagens temáticas contemporâneas no mundo da arte, tal como o são também – tantas vezes inconscientemente - no quotidiano de todas e todos nós. Diariamente nos chegam notícias do forte impacto causado pelas vagas de imigração ilegal e de tráfico humano tendo o “Velho Continente” como destino, especialmente (mas não só…) através da região do Mediterrâneo. Muitos o fazem por mar, de forma clandestina, precária e em condições totalmente desumanas, uns em barcos cuja segurança é tantas vezes falha e causadora de verdadeiros desastres humanos, outros escondidos em contentores como o que foi utilizado nesta obra.
É, assim, uma oportunidade para abordarmos estes fenómenos migratórios, não apenas pelas suas consequências, mas sobretudo pelas suas causas: a miséria, a fome, a guerra a crise climática com eventos cada vez mais frequentes de secas extremas, violentos fogos florestais, furiosas tempestades e imparáveis inundações.
Como é sabido, "Galera" é o nome de um tipo de barco bastante comum no mar Mediterrâneo durante a época dos impérios grego e romano. Tratava-se de um tipo de embarcação normalmente utilizada para fins comerciais e militares, que navegava principalmente à vela, mas que, na ausência de vento que a impulsionasse, também se deslocava utilizando remos, uma dura tarefa quase exclusivamente realizada por pessoas escravizadas.
Embora o paradigma atual seja distinto e a escravatura tenha sido abolida há já séculos, continuam a existir, como antigamente, alguns grupos de pessoas que, fugindo das suas regiões originais para tentar entrar clandestinamente no espaço europeu na esperança de uma vida melhor, se colocam à mercê dos traficantes que as escondem de autêntico em contentores tráfico humano.
Muitos destes migrantes acabarão por pagar com a vida esse sonho. Outros conseguirão entrar, alguns encontrarão trabalho, mas tantos deles em condições de quase ‘escravatura’, em zonas rurais onde a mão-de-obra local há muito escasseia, consequência, por sua vez, da migração das gerações mais novas dessas populações autóctones para os grandes centros urbanos, votando estas regiões, rurais e interiores, a um envelhecimento generalizado e ao mais abandonado esquecimento, social, político e económico, criando terreno fértil para o crescimento de medos, de populismos e de estigmas.
O artista Carlos No quer, desta forma, chamar a atenção para todos estes flagelos sociais que continuam a afetar milhares de pessoas em todo o mundo, utilizando o seu talento e o seu trabalho artístico para despertar consciências e para criar pontes e relações, tanto formais como conceptuais sobre estes temas que tanto afetam e preocupam todas e todos nós.
Fernando Ribeiro
Lisboa, Julho 2023