Jardim de Bétulas

JARDIM DE BÉTULAS

Quando Carlos No me explicou o seu projecto de instalar, numa sala fechada, banhada por fraca luz artificial, viradas para a parede de onde pende uma mangueira ligada a uma bilha de gás, 3500 minúsculas figuras em barro branco, feitas à mão, quase indistintas na sua, todavia, inequívoca individualidade, dispostas em mancha reproduzindo o mapa do Darfur e me disse que daria a esta obra o título “Jardim de Bétulas”, lembrei-me do “Bosque de Bétulas” de Klimt e da despida e fria sensualidade profusamente inscrita na paisagem de onde foi varrida a figura humana. Mantive-me em silêncio, escutando-o, tentando vislumbrar um nexo entre o “Bosque de Bétulas” do austríaco e a proposta de No, o nome que No me dizia, contando, enumerando, assombrados rostos humanos na paisagem. As bétulas de Klimt como metáfora do genocídio do Darfur? Mas se não há, que eu saiba, bétulas em África…

É certo que, como lembram Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, no “Dicionário dos Símbolos”, a bétula está “estreitamente ligada à vida humana, como um símbolo tutelar, tanto da vida como da morte”. Há, mesmo, um simbolismo funerário associado à bétula, inscrito num texto celta alusivo a um massacre. Outra pista, por certo.

Afinal, o autor inspirara-se no imenso bosque de bétulas que, meio século depois do quadro de Klimt, foi destruído, no sul da Polónia, no exacto local onde se ergueu Birkenau (Auschwitz II, o maior campo de extermínio nazi). Carlos No prossegue a enumeração. A inúmera acção. Não dá por resolvidos os velhos e os novos “problemas de aritmética”. Os árduos trabalhos de contar.

Enquanto Carlos No cuidava do Jardim de Bétulas, a UNICEF actualizava os números do Darfur. 3 milhões e 500 mil pessoas sob o grande esconjuro, uma das mais insanas desumanidades do mundo em que No não desiste de contar gente e histórias pelos dedos, sua maneira de encontrar caminho. Quase 2 milhões de deslocados, peças fora do lugar num tabuleiro de desolação. As milícias janjawid matam a esmo, destroem os poços, incendeiam as casas, massacram o gado. Há 500 mil crianças com menos de 5 anos, em perigo. Como se diz “era uma vez”, no Darfur?

Tantos nomes, tantos números, é esse o inesgotável tema de No. Como se, retomando o fio de uma sobressaltada narrativa, nos contasse: ”Era uma vez o príncipe no seu cavalo branco no jardim de bétulas onde se cantava, com acento francês, com acento chinês, o giroflé-giroflá do petróleo do Sudão. Então chegaram os janjawid. O príncipe tentou saltar o muro e fugir até ao outro lado do Darfur. Mas, na precipitação da fuga, perdeu-se dos companheiros, como se tivesse caído no manual dos desaparecidos, os que nunca mais foram vistos”. O principezinho é, agora, um menino soldado marchando para ser João Sortudo. Mais lhe valera ter sido, no sul, onde, desesperadamente, se perde o norte, em vez de “zurga” marcado para o extermínio no primeiro genocídio do século XXI, uma bétula, a árvore que não arde.

Carlos No não pousa a tábua das matérias, não deixa que o olhar faça tábua rasa. Enfrenta o jogo do mundo. A matemática. A anotação serial de corpos que se perdem de nós. Ele trata de contar os que não contam. Os rostos errantes de um sofrimento banal. As histórias infanto-contagiosas.

Sigo a sua obra, desprevenida e emocionadamente. Nada sei a respeito das técnicas que utiliza. Sei que nunca será um acrítico sobre tela. Sei que a sua arte é sempre um (hor)ror de histórias, ingénuas, terríveis, contaminadas de um real dorido e sonâmbulo. Ele vai buscar ânimo ao fundo da infância, ao saco mais fundo da memória, juntando as letras e os números ainda despovoados do seu futuro crime, procurando a pedra miliária, a primeira vez da inocência e do pecado, do mal do mundo em nós.

Fernando Alves

Mem Martins, Março de 2006