Impasse
CIRCULAÇÃO TEMPORARIAMENTE INTERROMPIDA
Nos anos 60, o noveau-realisme francês, a arte povera italiana e os pós-minimalistas americanos, revigoraram o poder evocativo dos materiais e dos objetos, abrindo a porta a um conjunto de sublinhados poéticos e políticos que não alienavam a teatralidade dos espaços e dos objetos instaurada pelos minimalistas mas antes a traziam para um território subjetivo, onde o sujeito se reconetava com o mundo e com a possibilidade de um olhar transfigurado sobre ele.
Podemos pensar na memória e cruzamento dessas aventuras artísticas como uma genealogia possível para a obra que Carlos No vem realizando nos últimos anos e para a qual uma tensão entre o empírico e o conceptual, o contingente e o histórico se revela fundamental.
Politicamente empenhado e socialmente desperto, mas não menos consciente da natureza específica do lugar e atuação possíveis da arte, No convida-nos a encontrar uma espécie de refração nos objetos que escolhe, modifica e apresenta; um efeito de espelhamento empírico que coloca esses artefactos no seio de uma rede de relações aparentemente invisíveis que reverberam as condições materiais do mundo em que vivemos e ao mesmo tempo as dialéticas sociais que sobre elas se erguem.
Só que ao contrário do design e das conceções que norteiam a criação de objetos funcionais, configurados para a eficácia, as estratégias artísticas de Carlos No concentram-se precisamente na ideia de inadaptação, entorse, desencaixe, desequilíbrio, rejeição, projetando assim para um plano sensorial e partilhável os desequilíbrios económicos, culturais e étnicos que enformam as sociedades contemporâneas.
Em “Impasse”, uma grande escultura-instalação que atravessa diagonalmente uma das salas do Museu José Malhoa, reconhecemos a aparência metálica de uma daquelas passagens a que somos forçados a recorrer quando um prédio se encontra em remodelação e os trabalhos podem fazer embater sobre nós o entulho ou alguma ferramenta que se solte de um ponto mais alto do edifício.
A obra faz uma referência direta ao universo da construção civil mas podemos encontrar nela uma outra, velada, àqueles que nela constituem a força de trabalho, os imigrantes ilegais, as minorias étnicas, os que, por uma razão ou outra, sempre ligada à exclusão encontraram no trabalho físico e desqualificado um modo de sobrevivência.
Ao endossar-nos o paradoxo de um tapume selado que não se deixa atravessar, Carlos No faz da impossibilidade de circulação uma constatação física, ao alcance de todos, obrigando-nos a estancar por momentos e a encontrar na nossa (não) experiência, a condição e destino do outro.
Transformar uma experiência de algo quotidiano, mecânico e potencialmente não consciente num processo de desfamiliarização é um caminho de interrupção vivificador, um detournement objetual que interrompe a nossa resposta automática à vida naturalizada e nos faz enfrentar um lugar de exílio em que nunca nos imaginámos. Por uma vez, como o refugiado, o migrante, ou o “ilegal”, também nós não passaremos. Talvez que nesse provisório e indolor “Impasse” algo em nós se mova.
Celso Martins, janeiro, 2019