Lethes
PARA FINISTERRA, DE CARLOS NO
Lethes
A mitologia grega fala-nos do Lethes como um rio do Hades, o Reino dos Mortos. Diz-se que Estrabão, fazendo do mito geografia, terá localizado o rio aqui bem perto, identificando o Lethes como o Rio Lima, a propósito de um combate entre tribos do qual resultara a morte dos chefes: os guerreiros ficaram espalhados pelas margens, sem saber porque combatiam, que causa tinham para odiar. As correntes do rio arrastaram a memória das coisas, como o lixo pelas marés.
Exílio
Viver em passagem, sem raízes, em desterro. Não sou de nenhum país, as fronteiras são ficções. Pertenço ao lugar onde me deito para dormir. Nada tenho, para além da minha memória. Se avisto o Lethes, não atravesso. Pudéssemos nós despertencer, o terreno é cinza, tudo foi ainda há pouco tempo.
Lethes, parte 2
Decimus Junius Brutus comandou uma expedição punitiva às Hispânias. Roma queria por os Gallaeci na ordem. O seu exército, vindo de sul, alcançou as margens do Lima em 135 a. C.. Conhecendo a história do Lethes, os soldados recusaram-se a atravessar o rio, temendo perder todas as lembranças. Brutus deu o exemplo: cruzou as águas do Lima e chamou os seus soldados pelo nome, um a um, da outra margem da memória.
Exílio, parte 2
Chega-se lá sempre à procura: a condição de passagem termina, o tempo passou. Já não é possível prosseguir, apenas regressar: o exílio é ali. Assim em Finisterra (ou Fisterra), na Galiza, assim em Finistère, na Bretanha ou em Land’s End, na Cornualha. Mas também em todos os lugares onde qualquer coisa acaba: a memória, o ruído, a perseguição, o sono. Estamos já do outro lado do Lethes, sem mais distância para percorrer.
Eduardo Brito
Guimarães, Outubro 2018
(Texto de catálogo - exposição "Finisterra", Museu Nogueira da Silva, Braga, de 3 Novembro a 5 Janeiro de 2019)